Conto: O Flautista
- Por Sky
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Yaron suplicou aos céus por vingança durante cinco anos.
Cinco anos aceitando a repentina morte da filha e esposa. Clamava aos céus a vingança, o sangue do rei. Chorou amargamente.
Na noite chuvosa da invasão dos selvagens tribais. Na noite em que sua família foi morta. Yaron pegou seu equipamento e se alistou para a guarda do rei.
Antes da tragédia o flautista fazia parte de uma respeitada trupe itinerária que trazia teatro, música e um espetáculo famoso chamado “duelo de sons“. Ele estava em viagem quando a vila foi atacada.
Seus talentos o levaram a um cargo alto na guarda pessoal do rei.
Cinco anos depois. Era a noite perfeita para a vingança.
Yaron limpou a superfície da flauta com lentidão. “O rei morre hoje” disse a si mesmo outra vez. “O rei morre hoje pela minha flauta” terminou a limpeza e retraiu a lâmina alocada na extremidade. A flauta transversal estava pronta.
O flautista passou pelo pátio do castelo com rapidez e trocando acenos silenciosos com os guardas que conhecia, mas ninguém sabia que ele se movia para matar e não proteger.
– O exército inimigo se aproxima. Precisamos dessas barricadas prontas! Yaron! Yaron, bom te ver – gritou o capitão responsável pela guarda da noite. Lukha e Yaron eram amigos desde que foram recrutados.
– Vai assumir o posto agora, certo? Avise ao Jona pra não se esquecer de reforçar a muralha oeste. Este castelo não pode cair – Lukha parecia mais nervoso que o habitual.
– Pode deixar – o flautista respondeu secamente.
Música ressoou na muralha que levava a sala do trono. O sargento que dava ordens aos dois soldados que protegeriam a porta se virou bruscamente.
– Yaron? Que susto cara, achei que…
– Desculpe Jona – o flautista interrompeu com uma estocada rápida da lâmina do instrumento. A flauta brilhou quando surgiu da capa.
O ferimento no peito de Jona jorrou sangue, levando o guarda ao desmaio.
– Semínima – disse num tom inaudível.
Um dos soldados correu para a sala do trono e o segundo ergueu seu machado: estava tremendo de medo ao ver os olhos sem vida do flautista.
Acompanhados do som de trompa, guerreiros escalaram a muralha externa e atingiram o corredor, interrompendo o duelo.
Grupo de cinco selvagens, empunhando machados pesados e espadas longas, cercaram o flautista. Yaron ergueu o instrumento e tocou rapidamente uma escala maior.
– Semicolcheia… – sussurrou e liberou a lâmina da flauta. Girou e atacou o primeiro selvagem às suas costas com um golpe na garganta. Esperou dois deles se aproximarem para elaborar uma sequência complexa que secamente perfurou o crânio de um deles e rasgou a garganta de outro. Ensopado de sangue, não aguardou o fim do embate entre o guarda e o último selvagem.
– Mínima – perfurou o coração do bárbaro pelas costas e empurrou seu corpo caído contra o soldado. Com o lado sem a lâmina atingiu a cabeça do guarda. Todo o som que restava era o ofegante respirar de Jona, mas Yaron quebrou o silêncio com uma sequência sombria de notas.
Sangue pingava da flauta.
…
Toda a guarda pessoal do rei estava de armas em punho e aguardando. Grisalho e já avançado em idade, o monarca não parecia se importar nem com a batalha do lado de fora nem com sua vida sendo ameaçada pelo flautista.
Mas em seu coração o terror era inegável.
– Yaron. Se afaste! – gritou um dos conhecidos do flautista – Por…Por que?
– Eu espero esse dia por anos. Arrancarei teu coração hoje! – respondeu apontando para o rei.
Os guardas ergueram as armas e avançaram contra Yaron de uma só vez.
– Semifusa – disse entre os dentes. O rei apenas viu o sangue voar para cima.
Primeiramente, o sangue que pingava da roupa e flauta de Yaron voou com seu salto. Seguidamente o sangue do guarda mais próximo jorrou do ombro desprotegido e mais ainda foi liberado quando o soco atingiu seu rosto.
Na metade de uma respiração os outros dois cortes arrancaram as armas dos próximos guardas. Cortes horizontalmente perfeitos que iam da mão até a interligação entre o ombro e o pescoço.
O mais alto dos guardas saltou sobre o flautista com a lança, mas foi impedido no ar pela estocada seca da lâmina retrátil. Um golpe cirúrgico na pequena intersecção do corselete com a ombreira.
Quatro guardas restantes.
Terror estampado no rosto dos soldados, Yaron correu e numa sequencia em zigue-zague atingiu os pontos não vitais dos guardas.
O rei estava congelado ao ver o flautista com a lâmina erguida e virada para o alto. O frio se tornou ainda mais palpável quando ele desceu a lâmina até a direção do monarca.
– Qual o motivo Yaron? Quem é você realmente? – ousou perguntar sem se mover.
– Lembra da pequena vila ao norte? Aquela que decidiu abandonar a própria sorte? – o sangue respingava para os lados ao gesticular e andar na direção do trono.
– Mas o-o que quer…
– AQUELA QUE DEIXOU OS SELVAGENS INVADIR! MINHA FAMÍLIA! MINHA MULHER! MINHA FILHA! – esbravejou e subiu as escadas correndo.
– Velho maldito, já condenou tantos que está caducando? – um filete de sangue escorreu pela lâmina que estava pressionada no pescoço do rei.
Ambos fecharam os olhos e permaneceram ali por segundos intermináveis.
– Termine…termine logo com meu sofrimento – murmurou o monarca ainda de olhos fechados. Yaron abriu os olhos e encarou a expressão de dor do rei. Notou também o colar escondido debaixo do manto real: a estrela do norte.
“A música é paz garoto. Nunca a use para causar dor ou sofrimento. Vingança é um sentimento de tolos…” a memória o tirou do transe assassino.
Retraiu a lâmina e respirou ofegante. “…um dia vai entender garoto” a voz do mestre de música ainda era suave e grave como no passado.
– A minha vingança não vai ser essa – disse em voz alta para o rei que ainda estava de olhos fechados – Você vai apodrecer e encarar os fatos todo dia. Amaldiçoo você e toda a sua família, rei caído. Seu legado será esquecido e tudo ruirá…mas, mas o reino permanecerá unido e terá paz. Garantirei a paz.
Yaron levou a flauta transversal avermelhada até sua boca – É meu novo fardo – tocou uma sequencia de notas desarranjadas e dissonantes. Notas que atormentariam o rei para sempre.
…
A porta de entrada do salão se abriu repentinamente, um estrondo que obrigou o monarca a abrir os olhos.
Lukha, acompanhado por uma grande quantidade de guardas sujos de sangue, correu até o rei e se ajoelhou perante o trono. Os outros guardas atendiam aos feridos.
– O que houve Vossa Graça? Está ferido?
– Não. Mas estou condenado filho… – e colocou as mãos sobre o rosto, chorando amargamente.
Nos salões do velho castelo é possível ouvir as notas dissonantes até hoje.