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Conto: A Hoste do Inferno

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É 27 de dezembro de 1912, estou de volta a Westminster, e o jornal descreve as atrocidades que eu cometi enquanto dormia...
"Morte flamejante", "fantasma das chamas", "cavaleiro do apocalipse"... são os melhores apelidos até agora...
Minhas tentativas de controlar o comensal continuam sendo frustradas. Correntes e algemas não são suficientes. Essa... coisa... derrete metal como se fosse manteiga... e não importa o quanto eu consiga acompanhar a luz do sol, assim que ela desfalece no horizonte, a besta assume o controle do meu corpo.

Eu sinto muito... minha integridade foi vendida por tão pouco... e ela era tudo o que eu poderia levar deste mundo.
Não há ninguém para culpar além de mim mesmo.
Hoje é o aniversário do assassinato dela. Que os céus me perdoem...
O que eu fiz por ódio condenou minha alma, mas, o que eu fiz por amor... condenou o mundo...

Era 29 de dezembro de 1602. As rosas estavam congeladas ao chão... negras, mortas pelo frio do inverno... e sujas de sangue...
Já haviam se passado dois dias desde que ela foi morta... e eu ainda ouvia seus gritos ecoando pelas ruas cidade...
Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?
Se Deus quer evitar o mal, mas não pode... então Ele não é onipotente...
Se pode, mas não quer... então Ele é perverso...
Só posso concluir que não pode ou não quer... então por que o chamamos de Deus?

Eu falhei...
Quando a acusaram de bruxaria, não pude protegê-la, mas talvez eu pudesse salvar sua alma... mesmo que eu condenasse a minha no percurso.
Apesar de eu ser apenas um iniciado, Evelyn já havia me familiarizado com os segredos do mundo dos mortos, mas ela estava inacessível. A inquisição havia condenado sua alma ao inferno e eu não me permiti descansar até encontrar um meio de encontrá-la.

Em seis meses eu me infiltrei na hierarquia da Ordem e organizei uma expedição a Enoque. As ruínas da "primeira cidade humana" deveriam abrigar as respostas que faltavam em meu quebra-cabeças e, realmente, abrigavam... mas o preço foi alto de mais.

O navio encalhou em recifes antes de avistarmos terra. Nada pôde ser salvo, não houve tempo. Estávamos longe de mais da costa africana. Deixamos Londres há mais de dois meses e o naufrágio poria fim às desventuras as quais condenei aquele grupo... mas não as minhas.
Nadei enquanto meus braços aguentaram, até o cansaço se tornar excruciante e, então, nadei mais. Eu havia ido longe de mais para desistir, mas, em algum momento, meu corpo cedeu.

Lembro-me ter sonhado com ela... e do alívio em acreditar estar morto...
Foi a última vez que eu sonhei.

Acordei com um gosto amargo na boca, levei horas para me localizar, mas eu havia conseguido. Eu havia dado "o passo maior do que as pernas".
Aquela ilha isolada do mundo civilizado abrigava fragmentos da história de um continente há muito perdido. As principais ruínas estavam submersas e tive que improvisar ferramentas para resgatar os ideogramas que, mais tarde, eu decifraria como relatos de seres que foram criados junto com o nosso universo e encontraram seu fim com a ascensão da nossa civilização. Seres puros, cujo poder sublime servia unicamente aos propósitos de Deus. Ferramentas de construção do paraíso. Um triunfo equiparado apenas ao seu monumental fracasso, consequência da indiferença de seu criador.

Nunca soube quanto tempo levei para organizar as informações até conseguir compreendê-las. Deixei de contar os dias e mantive minha mente trabalhando na inquirição para não enlouquecer... mas enlouqueci o suficiente para acreditar naquela versão perturbadora da história. Se eu estivesse certo, ao reabrir o portal que selou o destino dos anjos caídos, finalmente completaria minha senda.
Nunca estive tão errado...

Eu caí... e a queda era a única sensação que existia em meio a escuridão.
Eu poderia ter me acostumado com a dor... mas ela não existia. Poderia ter me entregado ao cansaço... mas o tempo não passava.

Nenhuma tortura poderia ser pior do que a punição divina. Cada minuto aqui equivale a um ano no abismo... e eu levei quase três séculos para voltar de lá. Permaneci consciente e lúcido por todo o trajeto... do umbral, em que me lancei com tanta paixão, até o fundo do abismo, onde Lúcifer criou sua própria concepção de mundo.

Preciso saber a verdade... saber o que eu trouxe do inferno comigo...
Se ao menos eu pudesse me comunicar com a besta, poderia estimar o quão ruim foi o acordo que fiz com o serafim amaldiçoado...
Enveredei por descaminhos inimagináveis para salvar uma alma, mas quantas eu terei que destruir em troca? Eu teria sido tão ingênuo?

Eu busquei a ira de um deus injusto, mas apenas consegui contemplar sua cruel indiferença.
Como um homem poderia enfrentar um deus que sequer seus imediatos foram capazes de compreender?
Lúcifer foi a criatura mais próxima do divino e eu não vi nada além de dor em seus olhos. O príncipe dos anjos, destronado, derrotado e desonrado por cumprir a função para qual foi criado. Essa é a justiça divina?

– "Não." Uma voz feminina responde meus pensamentos.

– "... Quem és tu?"

A jovem se aproxima e posso sentir sua natureza sobrenatural. –"Apenas uma amiga que tem te observado.
Pobre Alexander... para alguém que passou quase duzentos anos no inferno, até que você está se adaptando muito bem!"

– "................ quem... és... tu?"

Ela sorri maliciosamente. – "Ora... não foi o primeiro a cruzar o umbral... só que, no meu caso, eu precisei de um corpo humano para poder ficar por aqui.”

– "Como uma âncora para não ser sugada de volta ao abismo... já ouvi falar... anjo caído.”

– "Me chame de Alice. Era o nome... dela.
Não se preocupe, ela já estava morta quando reivindiquei seu corpo."

– "Lúcifer te enviou?"

– "Até te encontrar, eu sequer sabia se ele ainda existia. Sem ele, a maioria de nós enlouqueceu no abismo..."

– "... e agora corrompem as almas dos mortais."

– "Conhece a história. Aprendemos muitas coisas com vocês. Principalmente com Cain."

– "É um de vós que está dentro de mim... me controlando?"

– "Seraf...
Pelo que posso sentir, é o princípio ígneo usado para criar o inferno. Uma força primordial que Lúcifer usou para purificar almas corruptas."

– "Tudo o que eu sinto... é a fome dele. Essa... coisa... se alimenta da morte... e mata indiscriminadamente!"

– "Não, Alexander. Para alguém tão inteligente, teima em não enxergar. É por isso que não se lembra: não quer lembrar!
Você fez todas as perguntas enquanto procuravas a ira de Deus, exceto a mais importante!
Faça a pergunta certa e encontrará a resposta entre as memórias de Seraf."

– "E qual seria a pergunta certa?"

– "Você encontrou Evelyn no inferno, não foi? O que Lúcifer disse?"

– "Ele disse... que se eu trouxesse Seraf comigo e o ajudasse a se redimir com Deus, ao fim da minha jornada, eu poderia tirá-la de lá... se eu ainda quisesse...
...
Por que... eu não iria querer?
...
Porque... a alma dela... está no inferno?"

– "Esta é a pergunta certa."

– "... não...
Não... não! Não pode ser...
Ela... ela não pode!"

– "O fogo do inferno não queima inocentes, Alexander."

– "... como eu pude... ser tão cego!?
O sangue no altar de sacrifício... céus! As crianças desaparecidas!"

– "Sinto muito.
Já vai anoitecer. Dessa vez, ao amanhecer, você ainda se lembrará de tudo e, aos poucos, poderá até mesmo controlar um pouco do poder do justiceiro do inferno..."

O sol se põe e, novamente, sou dominado pela fome de Seraf. As chamas dissolvem minha carne e aprisionam meu espírito, mas, desta vez, eu permaneço consciente.
Seraf me mostra os pecados de suas vítimas enquanto volta a dor que haviam causado a inocentes contra elas mesmas, mas, em cada alma pecadora devorada pelo fogo do inferno, eu vejo Evelyn.

Eu já morri, fui torturado pela punição divina e desci ao inferno, mas nenhuma dor poderia ser pior do que a que sinto agora. Fiz o que fiz para salvar uma alma inocente do castigo eterno e, dessa forma, todos os meus feitos foram baseados em uma mentira.

A criatura devolve meu corpo junto a Alice ao amanhecer e, ali, nos braços compassivos daquele anjo caído, após enfrentar as piores 12 horas de minha existência, eu choro como um bebê.

Não haveria bondade que anestesiasse meu sofrimento. Lúcifer sabia que eu não desistiria de Evelyn. Ele sabia que eu me recusaria a enxergar. Sabia que nada que ele me dissesse desacreditaria sua inocência. Então ele me tornou sua ferramenta. Mostrou-me o mundo através de seus olhos, e assim eu pude entender o peso de uma alma.

– "Alexander... o serafim era o mais próximo de Deus e o descrevia como possessivo e indiferente... mas um homem, ha pouco tempo, conseguiu o perdão divino sobre a humanidade e lhes concedeu novamente o reino dos céus.
Acredito que Lúcifer tenha se identificado muito contigo... mas, depois de ter te observado, eu admito que começo a acreditar em seu potencial.
Talvez, em sua jornada... enviando os filhos de Cain a ele... você possa salvar a minha raça também."

Julho de 2014, não estou certo de que dia é hoje... já estou há décadas tentando controlar Seraf e me afastar dos maus, sem sucesso...
Acordei na costa esta manhã. Seraf está me levando para o leste. Provavelmente ele cruze o oceano esta noite e o motivo não me parece ser bom... nunca é.

De qualquer forma, não me restou muito aqui. A Ordem foi desmantelada há séculos. Eu só escapei de ser queimado como bruxo porque estava ocupado demais, curtindo férias no inferno. Todos que conheci estão mortos e o mundo inteiro parece estar caçando o "esqueleto flamejante".

Senti a necessidade de visitar Alice antes de partir. Já faz mais de uma década e Grim ainda é o único anjo caído que encontrei que não enlouqueceu por completo no abismo.

– "Confesso que senti falta desse olhar melancólico, Senhorita Grim. Te deprimo tanto assim?"

– "Pelo contrário, você tem sido o único que me conforta... me traz esperança."

– "Esperança?
Os tempos mudaram, mas as pessoas continuam as mesmas. Dizem lutar para construir um paraíso, enquanto o povoam de atrocidades. A cada dia, há menos inocentes... e maior a fome de Seraf...
Talvez minha jornada nunca acabe, Alice... e meu único pesar é não conseguir mais me lembrar do rosto da Evelyn..."

– "Para alguém que passou os últimos séculos isolado de qualquer contato humano, você é bem convincente em seu discurso."

– "Vai me dar motivos para crer no contrário?"

– "Não. Vou te dar um nome: Ayla Benatti D’Angelo"

– "E este nome deveria significar algo para mim?"

– "Significará para Seraf. Ele a sentiu esta noite."

– "... e vai matá-la?"

– "O mal a criou... deixou sua marca nela... mas não a domina.
Já passou muito tempo em sua própria companhia, Blake. Não há mais nada a aprender consigo mesmo."

27 de dezembro de 2015. Temo que essa data não tenha mais tanto significado para mim. Evelyn fez sua escolha... assim como aqueles que eu executo todas as noites.

Encontrei Ayla em Nova Iorque. Uma garota que fez meus problemas parecerem puberdade. Com apenas dezesseis anos de idade, D’Angelo fora sequestrada por demônios e torturada no abismo por um mês terreno, retornando de lá com perturbações profundas. E esse era só o começo de sua história com os caídos.

Ninguém permaneceria inocente depois de algo assim, mas havia algo a mais naquela garota.
Eu a ajudei a entender o poder com o qual estava lidando e ela fez o mesmo por mim, mas, assim como eu, Ayla carregava uma maldição que atingia a todos que se aproximavam dela.

Eu me aproximei o suficiente para sentir sua falta. Vidas violentas tendem a ser tiradas violentamente... eu tentei, mas não pude protege-la do que estava por vir. Apesar disso, credito que ainda nos encontraremos novamente.

Aprendi mais nos últimos poucos meses do que em séculos... e quanto mais eu aprendo, mais poderoso Seraf se torna.
Ainda que eu não controle a fome do comensal, já sou capaz de dar foco a ele. O adotei como uma manifestação das trevas de meu coração e lhe dei um nome mais adequado: Mawet.


(Esta é uma narrativa ficcional inspirada em Ghost Rider e elementos de World of Darkness)


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